Wilson da Costa Bueno*
Um banner rotativo
inserido no site Comunique-se, e patrocinado pela Souza
Cruz, exibia, para quem quisesse ver, um dia desses, uma
singela sugestão de pauta: Fumante perde mais uma
na Justiça.
A proposta, aos desavisados,
certamente pareceu natural. Afinal de contas, os jornalistas
precisam de matérias todos os dias e ali estava mais
uma, escancarada à sua frente.
Mas uma leitura atenta,
enriquecida pela história nada charmosa da indústria
tabagista, evidencia, mais uma vez, o comportamento cínico
daqueles que, com a complacência das autoridades,
continuam vendendo drogas e aniquilando vidas em todo o
mundo.
Depois de passarem décadas
negando os malefícios do cigarro (embora sempre soubessem
que ele causava câncer), as empresas (vamos nos fixar
aqui na Souza Cruz e na Philip Morris, que são as
mais conhecidas) mudaram, recentemente de tática:
começaram a proclamar, em alto e bom som, em sites
próprios e até em campanhas publicitárias
(como faz atualmente a Philip Morris) que o fumo é
realmente um produto terrível (alguém duvidou
disso algum dia?).
Setores da mídia,
e muitos jornalistas, infelizmente, começaram a enxergar
nessa proposta um fato positivo, taxando- a inclusive de
ação socialmente responsável. Matérias
se multiplicaram na mídia (e ainda estão por
aí) destacando o compromisso da indústria
tabagista com a cidadania, baseadas nas campanhas que têm
como mote "fumar com moderação".
A indústria tabagista
é absolutamente insinuante: ela se infiltra em todos
os nichos possíveis, particularmente no campo da
comunicação empresarial. Alguns exemplos flagrantes:
a revista comemorativa da ABERJE - Associação
Brasileira de Comunicação Empresarial, número
50, do primeiro trimestre de 2004, traz, já nas páginas
4 e 5, portanto logo após o editorial, um artigo
assinado por Valter Brunner, diretor de assuntos corporativos
da Philip Morris Brasil, defendendo a "responsabilidade
social" da empresa. Pela terceira vez , a Philip Morris
está também, entre os destaques do Congresso
de Comunicação, promovido pela Mega Brasil
(é também um dos seus patrocinadores, na verdade,
o primeiro que aparece na contracapa do folheto de divulgação)
. É possível, inclusive, encontrar a indústria
tabagista, confortavelmente instalada, nas newsletters do
Instituto Ethos e seus sites.
Quem não conhece
a Philip Morris e a Souza Cruz, imagina estar diante de
empresas efetivamente comprometidas com a sociedade. Mas
o passivo da indústria tabagista é enorme,
sobretudo no relacionamento com a mídia e a opinião
pública. São inúmeras as denúncias
comprovadas de manipulação da informação,
a cooptação até de cientistas para
divulgar pesquisas falsas (por exemplo, negando os efeitos
no fumante passivo) e o Valor Econômico chegou a publicar
matéria de duas páginas sobre o envolvimento
da Souza Cruz em episódio de contrabando de cigarros
(veja só!).
Há denúncias
recorrentes de prejuízos aos trabalhadores por causa
dos agrotóxicos nas plantações de fumo,
mas, sobretudo, há um fato insofismável que
a indústria tabagista não pode esconder: são
milhões de pessoas que morrem todos os anos em todo
o mundo vítimas do cigarro. O prejuízo à
saúde pública (o que os governos gastam para
"curar" as pessoas prejudicadas pela indústria
tabagista é muitas e muitas vezes mais do que elas
pagam em impostos e doam em sua ação "benemérita")
é enorme, já não fosse o fato de que
não é possível contabilizar quanto
valem milhões de vidas.
Muita gente ainda não
sabe que o Grupo Philip Morris mudou de nome (para Altria)
para fugir do estigma de empresa que mata pessoas.
A indústria tabagista
é cínica e imagina que pode, facilmente, enganar
os jornalistas e a própria opinião pública
(pelas notícias a ela favorável, talvez esteja
certa). A recente estratégia de proclamar os males
do cigarro tem como objetivo evitar exatamente que os fumantes
usem o argumento de que não sabiam que o fumo causa
problemas e que fora enganado por empresas, como a Souza
Cruz e a Philip Morris. É esse o argumento que as
empresas têm usado para "derrotar os fumantes"
nos processos na Justiça e, por isso, o empenho,
agora, em dizer que o cigarro faz mal (e como faz!).
Um fato ocorrido em
2001, portanto, recentemente, mostra até onde vai
o cinismo da indústria. A Philip Morris divulgou
estudo na República Tcheca em que afirmava que o
fumo é benéfico para a economia porque (incrível!)
, com as morte precoces provocadas pelo fumo naquele país,
o governo chegou a economizar até "30 milhões
de dólares em políticas de saúde pública
e pensões para idosos" ( a citação
é do jornal O Globo, de 18 de julho de 2001, p. 27).
É fundamental
ficar claro que, nos Estados Unidos, a indústria
tabagista tem feito acordo de bilhões de dólares
com Estados por causa dos problemas causados pelo fumo e
perdido centenas de ações movidas por fumantes.
Infelizmente, a Justiça brasileira age de maneira
diferente, embora tenhamos já algumas vitórias
contra a indústria das drogas (lícitas, mas
fatais). Não é verdade, portanto, como tentou
insinuar um importante profissional de Comunicação
Empresarial (assessor da associação que representa
a indústria do fumo no Brasil), em artigo publicado
no Valor Econômico, há algum tempo, de que
não adianta mover processo contra as empresas de
cigarro. Elas perdem, sim, embora usem de todos os subterfúgios,
lícitos ou ilícitos, para não pagar
as indenizações. E sugerem pautas sobre as
suas vitórias contra pessoas com câncer e outras
doenças.
Os comunicadores empresariais
precisam abrir os olhos , exercitar o espírito crítico
e, sobretudo, os jornalistas devem estar atentos para esta
tentativa perversa de manipulação.
A indústria tabagista,
como a de armas e a de bebidas, tem uma enorme dívida
com a sociedade e não pode ser contemplada com estes
espaços generosos para fazer a sua divulgação.
Ela não merece espaço pelo mal que tem causado
a todos nós. A indústria tabagista nada tem
de socialmente responsável, a não ser que
a gente tenha decidido avacalhar de vez este conceito (há
algo mais irresponsável do que matar pessoas e, depois,
eximir-se da culpa, dizendo que a culpa é delas?).
O fato de o produto que vende ser considerado legal não
a torna cidadã, apesar de seu investimento em propaganda
e estratégias de assessoria de imprensa para "lavar
a alma e a imagem".
Quanto à sugestão
de pauta da Souza Cruz, pelo menos em um caso ela frutificou:
A Gazeta Mercantil, no dia 8 de abril de 2004, na primeira
página do Caderno Legal & Jurisprudência,
publicou nota sobre a derrota do fumante, com o título
Ex-fumante perde a causa. De maneira acrítica, como
não deve ser a imprensa, valeu-se de material divulgado
pela Souza Cruz ( o "segundo a Souza Cruz" evidencia
a única referência consultada) para tripudiar
sobre o fumante. A publicação só mostra
que a vigília precisa continuar e que é importante
estar lutando sempre contra os grandes interesses. Eles
são poderosos, sorrateiros, cínicos e se valem
da comunicação para manipular a opinião
pública.
Uma empresa socialmente
responsável não mata pessoas e não
tenta "pisar-lhes na cabeça", quando, doentes
por sua causa, reivindicam seus direitos. Uma empresa socialmente
responsável não busca "vender" este
tipo de pauta. Uma empresa socialmente responsável
não se empenha em desmoralizar um consumidor fiel
que está morrendo por usar os seus produtos.
Está na hora
de reagirmos a esta agressão cínica da indústria
tabagista. Ela precisa ser enfrentada com esclarecimento,
discussão, indignação. A boa pauta
para a imprensa é o cinismo da indústria tabagista.
Vamos desmascarar de vez os "vendedores de drogas".
Se levarmos em consideração o filme Informante
(você ainda não viu?), talvez tenhamos, também,
que pedir proteção de vida. Ela é capaz
de tudo (quem é capaz de tripudiar sobre próprios
consumidores doentes, que as subsidiam, festejando as suas
derrotas, não tem escrúpulo algum!)
Fica, ao final, uma
sugestão barata e esclarecedora de leitura: o livro
do jornalista Mário César Carvalho, intitulado
O Fumo, da PubliFolha. Em pouco mais de 80 folhas,
em formato reduzido, ele releva as estratégias "socialmente
responsáveis" da indústria tabagista.
A comunicação cínica de quem mata e
pisa sobre o cadáver merece o nosso repúdio.
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* Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor
do programa de Pós-Graduação em Comunicação
Social da UMESP e de Jornalismo da ECA/USP, diretor da Comtexto
Comunicação e Pesquisa.